Trechos do livro Fome, do norueguês Knut Hamsum (1859-1952). O personagem (sem nome) descreve seu martírio, tentando a qualquer custo ser escritor e ter seus textos publicados.
(...) Mesmo lá fora, ao sentir de novo o aguilhão da fome, não me arrependi por haver deixado o escritório [de um jornal] sem pedir dinheiro. Tirei do bolso o segundo graveto e botei-o na boca. De novo me senti confortado. Por que não fizera isso mais cedo? "Você devia envergonhar-se- exlamei em voz alta- Que idéia foi essa de pedir uma coroa àquele homem [o editor do jornal], constrangedo-o mais uma vez?" Com extema dureza, censurei-me pela idéia atrevida que me ocorrera.
"É o cumulo! Não pode haver nada mais ignóbil! Assaltar um homem, quase ameaçá-lo de pancada, simplesmente porque você, cão miserável, precisa de uma coroa. Vamos, ande!Depressa! Mais depressa, vagabundo! Eu ensino a você!"
Larguei a correr, como castigo, percorrendo a galope uma rua após outra, excitando-me com exlamações raivosas, xingando-me furiosamente em silêncio, quando tinha vontade de parar (...)
De novo uma parada. Devia estar incrivelmente magro. De tão encovados, os olhos pareciam querer entrar pela cabeça adentro. Tinha o ar de quê? É o diabo, a gente ir se deixando desfigurar, vivo, unicamente por obra da fome (...)
Até a meretrizes pediam a Deus que lhes poupasse a visão do meu rosto. Com fúria cada vez maior, rangendo os dentes por me sentir tão esgotado, entre lágrima e blasfêmias, continuei a esbravejar, pouco ligando às pessoas que passassem (...)
Cochilava e refletia, sofrendo cruelmente. Achara uma pedrinha, que limpara e pusera na boca, para ter alguma coisa que mastigar(...)
Uma dessas tardes, no quarto, passara o corpo em revista e chorara com pena dele, durante todo o tempo. Havia semanas que usava a mesma camisa, dura de tanto suor ressecado (...)
Estou sentado no banco durante este tempo, bastante triste. Tenho asco de mim. Até as mão me repugnam. Odeio todo o meu corpo flácido, tenho horror de carregá-lo, de senti-lo em volta de mim. Oh, meu Deus, se tudo acabasse agora! Gostaria tanto de morrer.
Senhor do céu e da terra: um dia de minha vida para ter ainda um segundo de felicidade. Toda a minha vida por um prato de lentilhas... Escutai-me, só esta vez!(...)
A fome era medonha, e não sabia como sastifazer meu apetite escandaloso. Virava-me para um e outro lado, no banco, e apoiava o peito sobre os joelhos; arranquei um bolso do paletó e comecei a mastigá-lo(...)
-Ei... quer ter a gentileza de dar um osso ao meu cachorro? Só um osso; não é necessário mais do que isso. É pra ele ir se distraindo.
Deram-me um osso, um ossinho magnifico, onde restava ainda um pouco de carne, e eu meti-o por baixo do paletó. Agradeci tão calorosamente ao homem que ele me olhou, espantado:
-Não tem de quê.
-Não diga isso, foi muito gentil de sua parte.
E subi. Meu coração batia com força. Estaquei diante do portão arruinado de um pátio... comecei a roer os restos do osso. Aquilo não tinha gosto; o cheiro nauseante de sangue subia do osso, dando vontade de vomitar. Fiz nova tentativa. Ah, se pudesse guardar um pedacinho de carne, certamente faria efeito; a questão era conseguir que ele ficasse lá dentro. Mas outra vez a náusea me invadia. Furioso, dei uma dentada violenta na carne, arrancado-lhe umas poucas fibras e engoli-as com força.
Não adiantou nada: logo que se aqueciam no estômago, os restos começavam a subir. Apertei os punhos, comecei a chorar de desespero e a roer como um possesso; chorei tanto que o osso ficou ensopado de lágrimas; vomitei, praguejei, roí cada vez mais... Chorei como se o coração fosse arrebentar, e vomitei como antes. Em voz alta, condenei todos os poderes do mundo às penas do inferno.
2 comentários:
Um dos Melhores livros que li nos últimos tempos!|
Já li três vezes desde 1993. É ótimo.
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