21.2.07

Hotéis e Tintim


Em 1978 eu tinha 16 anos e voltava pedalando uma bicicleta velha, às 11 e meia da noite, vindo do meu primeiro emprego, como carregador de malas no Hotel X, perto da igrejona. Certa vez, morrendo de sono, fechei os olhos e quando dei por mim estava entrando num terreno vazio cheio de terra e capim. Bati no meio-fio e caí com tudo, sem me machucar, apenas me sujando. Dei risada, apesar do susto. Não me feri, assim como meu herói da época... Ele nunca se machuca.
Muitos anos depois, e também hoje, eu sei que, aliado ao sono depois de tanto trabalho, eu me sentia o Tintim, personagem do belga Hergé. Eu fechava os olhos e me via na pele dele. Eu vinha pedalando e criando situações como a que o personagem dos quadrinhos se metia. Qualquer poste ou cão era um inimigo pra mim. Vinha um carro e eu já imaginava que era um gangster querendo atacar.
Eu era o Tintim!
No Hotel X, como em qualquer outro, um mensageiro não deve puxar papo com os hóspedes. Você deve apenas subir com malas que pesam três vezes mais do que seu pobre corpo mirrado por três lances de escadas, abrir a porta, ofegando, e torcer pro filho da puta lhe dar ao menos uma gorjetinha. E quando você vai saindo escuta o filho da puta do porteiro sádico batendo a campahinha no balcão que é pra você descer rápido, porque tem mais malas, frasqueiras e pastas e malas que você tem que levar deitadas pra não amassar as camisas e que pesam quatro vezes mais do que seu esqueleto fraquinho de dar dó e que precisam porque precisam estar lá na porcaria do apartamento em menos de 2 minutos que é pra essa raça tomar banho e dormir, nem sem antes ligar na portaria pedindo um sabonete Phebo que o hotel cobra 5 vezes mais do que o preço normal. E daí você tem que subir novamente as escadas já ouvindo a campainha avisando que você tem que descer logo que é pra ir na rodoviária comprar uma passagem prum hóspede. E vai no sobe e desce, das 3 às 11 da noite, com direito a uma hora de jantar às 5 da tarde! E aí, meu caro mensageiro, você que se foda e vá comer onde quiser, mesmo o hotel tendo um baita restaurante, jogando comida fora. E aí você vai tomar uma vaca preta na sorveteria Imperial, porque você tem apenas 16 anos e é doido por essas guloseimas depois de passar fome dos 10 aos 14. E depois volta pra ouvir a campanhia; e subir e descer, e subir e descer aquelas escadas bonitas, carpete vermelho, carregando malas enormes e aquelas mulheres com suas bundas enormes à sua frente. Aquilo me incentivava, acho.
Mas, vamos dar um tempo nessa parte. É papo grande pra outra hora. Vamos de Tintim.
Era um domingo tranquilo, oito da noite, e chega uma casal com um rapaz da minha idade. Fui abrir a porta do carro e eles desceram. Eram de São Paulo. Quando olhei na mão do carinha eu vi o álbum: "Tintim e o Loto Azul".
O Único álbum que eu havia lido e relido do personagem era "As 7 bolas de cristal", que existia no acervo da biblioteca municipal. Li umas trocentas vezes na época em que matava aula (isso é outro papo pra outro post futuro).
Subindo com as malas do casal eu perdi o medo de não poder conversar com hóspedes e perguntei onde ele tinha comprado aquilo. Aí ele me disse que em São Paulo tinha em qualquer livraria (vejam como Maringá já era atrasada em 1978). Aí eu disse, quase chorando, que era fã do Tintim. Sabem o que o rapaz fez? Abriu o álbum na última página e descartou um cupom onde estavam mais de 25 títulos e me deu. "É só pedir pelo Correio. Toma. Marca os que você quer que eles mandam".
A campainha estava tocando novamente lá embaixo, me chamando pra mais malas. Eu quase não ouvi. Sentei na escada e fiquei lendo aquele monte de nomes das histórias do Tintim que estavam à minha disposição. Eu ganhava uma gorjetinha boa e dinheiro não seria problema pra adquirir, devargazinho, todos eles.
A campainha repicou nervosa outra vez. Me levantei e fui quase flutuando lá pra baixo e já querendo mandar o porteiro praquele lugar. E pensando:
"Eu sou Tintim, seu merda!! E você quem é? Um panacão, burro, que só sabe escravizar a gente com essa campainha juntamente com o dono dessa porra e a amante dele"!
(Mas eu não falei, porque eu precisava do trampo)

4 comentários:

Anônimo disse...

Pra variar, outro ótimo texto, tio Lukas. Conta mais pra gente do Hotel Bandeirantes e suas peripécias. Ou eu tô enganado de hotel?

Anônimo disse...

Eu tambem comprei a minha coleção
toda pelo correio album por album,
não via a hora de chegar...
Eu também era o Tintim...
Edson

Anônimo disse...

Legal tuas histórias. Eu também comprei vários álbuns do Tintim quando viajava pra São Paulo.

Bruno Porto disse...

Tintim é sensacional! Mesmo aqui na China: http://www.verbeatblogs.org/lotoazul/